Por que o trabalho materno, essencial para a vida em sociedade, é tão invisibilizado e desvalorizado? Por que, certa relutância, em reconhecer a existência de uma divisão sexual do trabalho? Inicialmente, este texto, foi motivado por reflexões em torno das mulheres que me precederam. Ao longo da escrita, acabei por encaminhar reflexões em torno do trabalho materno e da divisão sexual do trabalho.
O legado das mulheres que vieram antes de mim mistura dor, frustração e silenciamento. De igual maneira, é um legado de resiliência, criatividade e força. Ao mesmo tempo, hoje e há alguns dias, venho pensando naquelas que virão depois de mim.
Para elas, sei que, inevitavelmente, deixo minhas dores porque são parte de mim. Mas, também deixo minhas curas, minha voz e meu amor. É por isso que escrevo.
O trabalho materno e a economia do cuidado
As mulheres e meninas são responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado realizado no mundo e representam dois terços da força de trabalho envolvida em atividades de cuidado remunerado.
O trabalho do cuidado não remunerado e mal pago é praticamente invisível. Portanto, ele perpetua a desigualdade econômica e de classe sexual – e é perpetuado por ela. Por isso, o trabalho do cuidado é uma importante questão histórica e econômica.
Ao mesmo tempo, o trabalho do cuidado é extremamente subestimado e desvalorizado por governos e empresas, sendo muitas vezes considerado um “não trabalho”. Então, os gastos com esse tipo de trabalho são considerados custos e não investimentos. Assim, os cuidados prestados se tornam invisíveis em indicadores de progresso econômico e agendas políticas.
Além disso, as mulheres e meninas que assumem o trabalho do cuidado têm pouco tempo para si mesmas de forma que não conseguem satisfazer suas necessidades básicas ou participar de atividades sociais e políticas.
Na Bolívia, por exemplo, 42% das mulheres afirmam que o trabalho de cuidado é o maior obstáculo à sua participação na política. Por sua vez, no Brasil, as mulheres representaram apenas 32% das candidaturas, em 2018, e foram só 15% das parlamentares eleitas.
Impactos na saúde
A invisibilização do trabalho de cuidado tem um profundo impacto na saúde das mulheres. Por vezes, a sobrecarga de tarefas, a falta de reconhecimento e a ausência de políticas públicas adequadas provocam aumento do estresse, da ansiedade e da depressão. Além disso, as mulheres que dedicam grande parte do seu tempo ao cuidado de outras pessoas tendem a negligenciar sua própria saúde, o que pode resultar em problemas de saúde crônicos e doenças cardiovasculares.
A boa notícia
A despeito de tantos desafios, existe boa notícia. Atualmente, o trabalho feito por mulheres em casa vem saindo da invisibilidade e ganhando cada vez mais espaço, principalmente nas pautas de políticas públicas levantadas por mulheres. Daí a necessidade da representatividade feminina nos lugares de poder.
Em 2021, o governo argentino reconheceu como trabalho o cuidado materno na criação dos filhos, contando como tempo de serviço para a aposentadoria. Desta forma, a medida beneficiou de forma imediata aproximadamente 155 mil mulheres mães com idades entre 60 e 64 anos. Ou seja, na faixa etária para se aposentar, mas que não tinham os 30 anos de contribuição exigidos por lei.
Portanto, em agosto daquele ano, todas as mães argentinas puderam contar como tempo de serviço para a previdência a dedicação materna seguindo como critérios:
- Inclusão de um ano de contribuição para cada filho;
- inclusão de dois anos de contribuição para cada filho adotado;
-
Inclusão de três anos de contribuição para cada filho com deficiência.
Trabalho materno é trabalho
Enquanto isso, no Brasil, também em 2021, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher aprovou o Projeto de Lei 2757/2021. De autoria da deputada Talíria Petrone (RJ), o projeto reconheceu o cuidado materno como trabalho, garantindo a aposentadoria para mulheres com filhos que não conseguiram se aposentar por outros meios. Segundo Talíria: “O trabalho materno não pode continuar invisibilizado! Quantas mães são obrigadas a largar o trabalho formal para se dedicar às crias? Quantas se sobrecarregam para cuidar dos seus pequenos? É justo que esse esforço não seja reconhecido? Quem dá suporte a essas mães na velhice?”
Corpo feminino e a fronteira do capitalismo
A filósofa Silvia Federici foi pioneira ao promover reflexões acerca da economia do cuidado. Ela analisa o capitalismo e as relações entre o trabalho assalariado e o trabalho reprodutivo, partindo da ideia de que o corpo feminino é a última fronteira do capitalismo. De acordo com a autora, a caça às bruxas, por exemplo, foi um mecanismo de controle social que visava submeter as mulheres e garantir a acumulação primitiva do capital. Entre os séculos XV e XVI, quando Igreja e Estado criminalizaram o conhecimento feminino sobre ervas medicinais e práticas de cura, impediram as mulheres de desenvolver suas próprias formas de autonomia e poder.
Pela valorização do trabalho materno
Desta forma, refletir a respeito da história da exploração do trabalho feminino permite compreender o presente. Ao mesmo tempo, possibilita um repertório de fortalecimento da luta pela valorização do trabalho materno. Neste sentido, valorizar o trabalho materno passa pelo reconhecimento da sua importância para a reprodução da vida social. Para transformar essa realidade, é preciso agir em diversas frentes: ampliar políticas de licença parental, garantir creches e escolas de qualidade, promover a igualdade salarial e combater o assédio sexual no ambiente de trabalho.
Para além da valorização do trabalho doméstico, é preciso transformar as relações de poder, as sujeições capitalistas e patriarcais que sustentam as relações sociais.
Se você quiser aprofundar sua leitura, recomendo Calibã e a Bruxa, da filósofa Silvia Federici.