Breve história do equilíbrio dos pratinhos

Coluna Feminismo

Todos os dias pela manhã, ao me olhar no espelho enquanto escovo os dentes, penso no equilíbrio dos pratinhos que preciso garantir naquele dia. As “coisas” passam pelo trabalho doméstico: colocar roupa na máquina, recolher a roupa do varal e depositar na poltrona de roupa limpa para guardar deus sabe quando, providenciar o almoço. Também passam pelo meu trabalho remunerado: monitorar projetos, encaminhar relatórios, estudar, pesquisar e escrever. Envolve pensar nas atividades escolares da filha mais velha. E os cuidados com a mais nova: amamentação, medicação, hidratação da pele de aristocrata dela que exige hidrantes para além da casa dos cem reais. Antecipadamente, a lista é grande. Talvez dê pra ir à lua e voltar e ainda te encontrar aqui.

Quinta-feira passada acordei pensando em tudo isso. Mas, à tarde, quando a maior estava na escola e a menor dormiu, eu me deitei no sofá com um bocado de doce e assisti uma comédia romântica. Num passe de mágica, a roupa no varal, a louça por lavar e os e-mails para checar migraram para a categoria das coisas que podiam esperar. E eu podia me privilegiar. E descansar.

Na sociedade moderna, se a gente não tira foto e não posta, não vale, né? Pois foi isso que fiz. Porque eu sabia que receberia mensagens do tipo: “fez a escolha certa” ou “tá certa em descansar”. E foi mesmo esse tipo de comentário que recebi. Na verdade, eu precisava de  de uma confirmação de que a escolha, realmente, foi a mais acertada.

Pretérito do presente

No dia 13 de dezembro de 1927, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino enviou ao Senado uma petição com mais de 2 mil assinaturas, no contexto de discussão do projeto que visava conferir direitos políticos às mulheres brasileiras. 

O texto reforçava uma mensagem que foi repetida reiteradas vezes por feministas no início do século XX: as mulheres feministas reivindicavam espaço e participação na vida pública e na vida política do país, sem negligenciar suas famílias e deveres domésticos. 

Ao longo do texto, elas destacaram que as mulheres já estavam inseridas no mercado de trabalho, obedeciam às leis e pagavam impostos. Portanto, nada mais justo que o direito de voltarem e de serem votadas. 

A primeira prefeita de uma cidade sul-americana foi Alzira Soriano, em Lages, Rio Grande do Norte. Sua eleição aconteceu em 1928. Alzira havia ficado recentemente viúva e era mãe solo de três filhas. Numa entrevista ao jornal O Paiz, ao ser perguntada a respeito da conciliação entre deveres conjugais, cuidados com as crianças e o engajamento político, Alzira declarou: “A mulher pode ser mãe e esposa amantíssima e oferecer ao mesmo tempo uma boa parcela das suas energias cívicas e morais.”

Texto retirado do jorna O Paiz, 1928.

Conciliação entre trabalho externo e vida doméstica

Àquela época, as mulheres já conciliavam mundo do trabalho externo e vida doméstica, muitas das quais impelidas pela necessidade de subsistência. Mas, ainda assim, se tornava necessário justificar a capacidade da mulher em ocupar espaços públicos e administrar o espaço do lar, numa necessidade de convencer a classe dominante – masculina – de que seriam capazes de “equilibrar os pratinhos”, para usar uma expressão contemporânea.

Em 30 de dezembro de 1928, a Federação Brasileiro pelo Progresso Feminino, dirigida por Bertha Lutz, publicou uma fotografia de Alzira Soriano, parabenizando-a pela eleição. A homenagem elogiava os predicados maternos da prefeita:

Tratando-se de um elemento feminino de capacidade reconhecida, de largo tirocínio político, interessada nos problemas da administração pública desde os 15 anos, e contudo esposa dedicada e mãe amantíssima reúne todos os predicados para administrar.

A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, da qual é um dos ornamentos, apresenta à nova prefeita congratulações e votos de felicidade na administração pública e no lar.

A História nos ajuda a compreender os caminhos percorridos até os dias de hoje e não pode ser inviabilizada ao se pensar políticas públicas para mulheres. As experiências e as lutas das feministas brasileiras do início do século XX contribuem para reflexões no âmbito da História das Mulheres, sendo inviável dissociar suas pautas das diferenças sexuais (que, aliás, elas mesmas sinalizaram ao reivindicar uma “igualdade entre os sexos”). 

E os homens?

Em nenhuma notícia sobre a atuação política de homens se encontram referências à luta deles para ocupar aquele espaço porque, afinal, eles sempre estiveram lá. Ao mesmo tempo, também não se encontram entrevistas com prefeitos ou senadores questionando sua sobre a dedicação às suas esposas ou filhos. Os predicados paternos não são encontrados como chancela para que homens exerçam funções públicas. Não foi assim no passado, não é assim hoje em dia. Infelizmente, atualmente, notícias carregadas do discurso d’O Paiz são encontradas se referindo às mulheres, principalmente, se estiverem ocupando lugares de destaque na sociedade. Certamente, você já se deparou com alguma notícia do tipo pela frente. A Folha de São Paulo opera assim com tanta frequência que é capaz de render outra news.

Sobrecarregadas e cansadas

Mas o que as lutas feministas do início do século XX têm a ver comigo, deitada no sofá, numa quinta feira, comendo doce e assistindo TV?

Ainda hoje reproduzimos a cultura que mulheres dão conta de tudo quando na verdade estão sobrecarregadas e cansadas. Não é natural para mim descansar porque é como se uma entidade superior me dissesse sempre que preciso produzir e ser útil. E aí, descansar, para mim, significa subverter a lógica dessa entidade que, certamente, é masculina. Se lá atrás, as mulheres que nos precederam precisaram fincar os pés no discurso de que sim eram capazes de equilibrar os pratinhos envolvendo trabalho, vida pública e trabalho doméstico para conquistar seus lugares na sociedade; hoje ainda precisamos enfrentar as desigualdades consolidadas historicamente pela opressão masculina justamente defendendo uma divisão equânime de oportunidades e denunciando a sobrecarga. 

Xana

Dar conta de todas as frentes de trabalho que o mundo contemporâneo exige, relacionamentos e filhos, suprir tudo perfeitamente e com saúde física e mental em dia é inviável. Romper com o patriarcado exige um passo inicial que é a aquisição de consciência de classe sexual. Ao mesmo tempo, pode-se romper com o ideal da mulher guerreira. Topa? O pratinho das crianças não pode cair, é certo. Mas e o seu pratinho, quem equilibra?

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