A vida das mulheres, dragões e patriarcado

Havia tempo que eu não me sentava à frente da TV, conectando na Netflix para escolher algo para assistir. O universo conspirou a favor e a criança mais nova cochilou. Então, precisei fazer uma escolha rápida: lavar a louça, responder e-mails ou ver um filme sobre a história da vida das mulheres? 

Para não perder a chance, não me demorei muito e escolhi Donzela, filme lançado em março de 2024. 

Donzela é a história de Elodie (Millie Bobby Brown). A jovem foi levada ao casamento por seu pai em troca de bastante ouro. A moça não demonstrou entusiasmo com a possibilidade do matrimônio. Mas, seu pai não pareceu se importar muito com isso.

O reino de Lord Bayford (Ray Winstone), pai de Elodie, vivia uma grande crise e os súditos estavam empobrecidos, passando frio e fome. Neste momento, a rainha Isabelle (Robin Wright), do reino de Áurea, procurou Lord Bayford. Ela estava interessada em casar seu filho Henry (Nick Robinson) e prometeu um dote expressivo.

A vida das mulheres e o arquétipo da donzela

Elodie e sua família foram ao reino do noivo para conhecer a realeza e acertar os detalhes do casamento. Seu pai soube que receberia um dote superior ao que havia imaginado pela filha. No entanto, naquele momento, ele também foi informado que Elodie seria entregue num sacrifício para um dragão que habitava uma caverna e que ameaçava a segurança do reino. Embora tenha demonstrado consternação, ele não voltou atrás na decisão. 

Logo após o casamento, Elodie e o marido seguiram para a caverna onde ela deveria ser sacrificada. No caminho, ele explicou que se tratava de um ritual ancestral, mas não revelou para a esposa que ela teria sua vida sacrificada. 

Chegando à caverna, Henry e Elodie foram forçados a um ritual de sangue pela rainha Isabelle. No ritual, a jovem foi nomeada como sua filha. Após o ritual, a moça foi atirada no precipício pelo próprio marido e se viu no desafio de sobreviver ao dragão. Enquanto lutava por sua sobrevivência, a donzela descobriu os vestígios das inúmeras mulheres que já haviam sido sacrificadas ali, bem como a origem daquele ritual tenebroso. Sua existência teria o mesmo fim que a vida das mulheres sacrificadas ali?

Doznelas em tempos imemorais 

Em tempos imemoriais, quando os ancestrais de Henry chegaram naquela ilha, descobriram que o local era habitado por um dragão. A fera, na verdade, era uma fêmea e tinha 3 filhotes recém saídos dos ovos.

O rei e seus cavalheiros mataram os filhotes e tentaram fazer o mesmo com a mãe, sem sucesso. Então, enfurecida, ela negociou com o rei a vida de suas três filhas de forma que ele pudesse sentir a mesma dor que ela sentiu. Além disso, de tempos em tempos, as linhagens sucessivas deveriam também sacrificar a vida de 3 filhas para atender seu desejo de vingança.

De tal forma, a vida das mulheres daquele reino e dos lugares vizinhos estava sob ameaça constante.

No decorrer dos diversos enfrentamentos com o dragão, Elodie se descobriu uma mulher forte e inteligente, capaz não apenas de sobreviver, mas de negociar e subverter a lógica do jogo que a colocou naquela situação.

Dama de Companhia

Segundo o dicionário, “donzela” significa dama de companhia, criada da corte, aia. Também era um título nobre atribuído às filhas solteiras de homens importantes, como fidalgos e reis.

Historicamente, na literatura e em obras cinematográficas, a donzela foi representada como uma mulher jovem e frágil, geralmente em apuros, ameaçada por um vilão ou um ser monstruoso. Porém, no fim do enredo, a moça acaba sendo salva por um herói.

Entretanto, nesta história, Elodie salva a si mesma e a vida das mulheres de sua família, rompendo com este paradigma (ou seria sina?).

Ademais, o filme ilustra perfeitamente a dinâmica patriarcal ao longo do tempo e a atuação feminina capaz de sustentá-la por mais de 5 mil anos.

Mulheres coniventes com o patriarcado

Quando os ancestrais da rainha Isabelle chegaram e colonizaram a ilha onde se fixaram, o local era um território ocupado pelo dragão e sua família. E então, o que se vê é exatamente o modus operandi do patriarcado: busca-se destruir os donos das terras que desejam. Naquele caso, uma terra dominada por uma dragão fêmea e seus filhotes. Ou seja, é como já repeti em outras ocasiões: no patriarcado, a vida das mulheres mães e suas proles é a mais vulnerável.

A partir de então, aquele clã se consolidou na região sufocando o passado ao custo da vida das mulheres em situação de vulnerabilidade porque a vida delas tinha menos valor que a vida das mulheres do seu grupo familiar. E, assim, conseguiram atravessar o tempo acumulando poder e riquezas.

A rainha Isabelle foi a mulher que providenciou todos os detalhes do sacrifício da donzela. Ela era a matriarca, a detentora dos saberes e das necessidades do dragão. Assim, foi ela quem buscou mulheres fora do seu clã, inclusive por Elodie, para satisfazer a vingança da fera. Tornou-se cúmplice de um arranjo covarde submetendo a vida das mulheres fora do seu clã. Portanto, Isabelle foi algoz de outras mulheres para proteger seu poder e o reino.

As origens do patriarcado e a vida das mulheres

Aproximando-me da conclusão, não posso deixar de mencionar o desempenho dos homens na História. O pai de Elodie viu no casamento da filha a possibilidade de garantir a sobrevivência do seu reino e do próprio poder. Desta forma, não hesitou, mesmo sabendo do risco de vida que a filha corria. Nas sociedades antigas, a pobreza (desencadeada por dívidas, alterações climáticas ou guerras) colocava a vida das mulheres, mesmo as de origem mais abastadas, em situação de perigo. Deste modo, casamentos às pressas, venda, escravização e prostituição eram os destinos possíveis para as mulheres, na Mesopotâmia, por exemplo.
Ao mesmo tempo, Henry também não hesitou em atirar Elodie ao dragão porque manter a segurança e poder familiar era mais importante que a vida da esposa.

Se o patriarcado foi criado, pode ser destruído

O que ninguém esperava – quer dizer, nós, os espectadores esperávamos sim – é que Elodie sobreviveria. Ao final, a donzela surgiu como uma mulher insubmissa e capaz de integrar a memória daquelas que a antecederam. Ao unir sua força à força ancestral delas, ela conseguiu revelar para o dragão os verdadeiros culpados por sua dor. Porque apenas o conhecimento sobre o passado é capaz de nos libertar dos destinos que nos determinam.

É o conhecimento o instrumento capaz de fortalecer as donzelas para romper com o patriarcado.

Como sempre me perguntam sobre os livros que leio sobre História das Mulheres e Feminismo, deixo aqui embaixo alguns links que direcionam para os títulos que não saem da minha mesa.

Esses dois são bem teóricos, da Gerda Lerner: A criação do patriarcado (https://amzn.to/43qhPOb) e A criação da consciência feminista (https://amzn.to/491tOTj )

Ah! Não se vá antes de deixar seu comentário aqui embaixo, ok? Me conta, já viu o filme? Da mesma forma, não deixe de conferir outros conteúdos deste site!

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