Desafios para manter laços familiares

A história da maternidade das mulheres negras no Brasil é uma história de lutas e resistências, inclusive no período pós-abolição. A princípio, pode-se imaginar que a liberdade pudesse significar o direito de usufruir do vínculo familiar com tranquilidade. Mas, não foi bem assim. Entre 1880 e 1900, as mulheres libertas enfrentaram desafios significativos para manter seus laços familiares e garantir a segurança de seus filhos. Este é um grupo social que por muito tempo a História negligenciou. Por isso, esse texto propõe uma reflexão sobre as condições maternas dessas mulheres. Pois, mesmo após a abolição da escravidão, elas continuaram a ser alvo de práticas que perpetuavam a opressão e a desigualdade.

A Maternidade Sob o Regime Escravista

Ao longo do século XIX, as mulheres negras ocupavam um lugar relevante na ordem escravista, principalmente, como instrumentos de reprodução da força de trabalho. O exercício da maternidade, tão exaltado no período para as mulheres brancas, era negado às mulheres cativas. Muitas daquelas mulheres trabalhavam exaustivamente durante toda a gestação. Outras tantas sequer tinham direito ao mínimo descanso no pós-parto e retornavam para as lavouras. Havia aquelas que eram alugadas como amas de leite e não podiam amamentar os próprios filhos e obrigadas a nutrir os bebês alheios. A despeito das leis que proibiam a dissolução das famílias escravizadas (1869) ou a venda de ingênuos (1871), é possível encontrar inúmeros anúncios em jornais da época de compra e venda de filhos de mulheres escravas. Sendo assim, estamos falando de um grupo social em situação de extrema vulnerabilidade social.

Ama de leite com Fernando Simões Barbosa – Pernambuco, 1860.

O Pós-Abolição e a Luta pela Liberdade

Com a abolição (1888), é de se imaginar que as mulheres negras esperassem uma nova vida, mas a realidade foi bem diferente. Ex-senhores utilizavam processos tutelares e contratos de trabalho para manter o controle sobre os filhos dessas mulheres, alegando que elas eram incapazes de cuidar de suas próprias crianças. Segundo o jornalista e abolicionista José do Patrocínio, esses processos eram uma forma de “reescravização”, porque mantinham mães e filhos sob o domínio dos antigos senhores:

“Para este fim, alguns magistrados indignos da toga que vestem têm-se prestado a
considerar como órfãos os filhos de mães que foram escravas.
É sabido que a imoralidade da escravidão fez com que a maioria de descendência de
mães cativas seja de filhos naturais e, desde que os juízes os considerem a seu belprazer
órfãos, cria-se um novo cativeiro.”

José do Patrocínio, CIDADE DO RIO, 23/05/1888.

Mulheres libertas desassistidas pelo Estado

O Estado brasileiro, naquele contexto, pouco fez para proteger as mulheres libertas e seus filhos. Os ex-senhores, juízes de órfãos e delegados, se serviam das Ordenações Filipinas, ainda em vigor, para defender os próprios interesses e burlar a abolição. Os processos tutelares eram instrumentos jurídicos presentes nas Ordenações. Então, juridicamente, aquelas mães eram incapazes de cuidar de seus filhos. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da jurisprudência da época, os ex-senhores eram aptos para tutelar crianças e jovens que não eram seus.  Os jornais com tendência progressista ou com aproximação ao movimento abolicionista denunciaram a prática e fizeram diversos artigos cobrando uma posição do Ministro da Justiça. Ao fim, a negligência do Estado perpetuou a vulnerabilidade das famílias negras no pós-abolição.

Estratégias de Resistência das mulheres libertas

Apesar das iniciativas dos ex-senhores para manter relações de subordinação, as mulheres libertas não se renderam. Elas buscaram estratégias para defender seus filhos e garantir o direito à liberdade. Assim, elas publicavam anúncios em jornais procurando por filhos perdidos, recorriam à justiça para contestar tutelas injustas e mobilizavam redes de solidariedade. Um exemplo marcante é o de Maria Rita, que lutou  para resgatar seu filho Herculano das mãos de um ex-senhor.

Maria Rita e Herculano

Maria Rita, uma ex-escrava, havia concordado em trabalhar para Eugênio Francisco Pinto, um alferes da Guarda Nacional e vereador em Nova Friburgo, por um salário de 4 mil réis mensais — valor bem abaixo do que era pago na capital. Após seis meses de trabalho, quando decidiu sair do emprego, Eugênio pagou apenas 6 mil réis pelos meses de trabalho e se recusou a entregar seu filho Herculano, de 8 anos, alegando que ele estava sob sua tutela judicial.

Maria Rita tentou resgatar o filho por conta própria, mas encontrou Herculano em condições deploráveis: ele sofria castigos físicos tão severos que mal conseguia se levantar. Quando tentou levá-lo, foi ameaçada e expulsa por Eugênio. Desesperada, Maria Rita recorreu ao Juízo de Órfãos, onde foi informada de que precisaria de 200 mil réis para abrir um processo de remoção de tutela — quantia que ela não possuía.

José do Patrocínio e a causa das mães

José do Patrocínio, um dos mais fervorosos abolicionistas do Brasil, não apenas lutou pela libertação dos escravizados, mas também continuou engajado na defesa dos direitos das mulheres libertas e de suas famílias após a abolição em 1888. Ele reconhecia que a liberdade formal não significava o fim das opressões, especialmente para as mulheres negras, que continuavam enfrentando desafios para manter os laços familiares e garantir a segurança de seus filhos.

Patrocínio utilizou sua influência como jornalista para denunciar as práticas de “reescravização” que persistiam no pós-abolição. Ele foi um crítico ferrenho dos processos tutelares, que eram frequentemente usados por ex-senhores para manter o controle sobre os filhos das mulheres libertas. Em seus artigos no jornal Cidade do Rio, ele expôs casos como o de Maria Rita, que lutava para resgatar seu filho Herculano das mãos de um ex-senhor que o mantinha sob tutela. Patrocínio não apenas denunciava essas injustiças, mas também mobilizava a comunidade para ajudar financeiramente essas mães, que muitas vezes não tinham recursos para pagar os custos dos processos judiciais.

Publicação no Cidade do Rio. Fonte: Hemeroteca Digital / BN.

Mães e proles em tempos de crise

O engajamento de Patrocínio na causa das mulheres libertas reflete sua compreensão de que a abolição foi apenas o primeiro passo em uma longa jornada por justiça e igualdade. Sua voz foi crucial para dar visibilidade às lutas dessas mulheres e para pressionar as autoridades a agirem contra as práticas que perpetuavam a opressão e a desigualdade.
Por outro lado, a história das mulheres libertas no pós-abolição é um testemunho de resistência e luta. Elas enfrentaram um sistema patriarcal e racista que buscava manter as estruturas de dominação da escravidão. Apesar de todas as dificuldades, essas mulheres mobilizaram-se para defender seus projetos de vida e a manutenção dos laços familiares. Portanto, suas histórias lembram acerca da vulnerabilidade das mães e proles empobrecidas, ainda mais, em tempos de crise. Em simultâneo, sinalizam para a importância de reconhecer e valorizar o protagonismo das mulheres negras na construção da nossa sociedade.

Referência: URRUZOLA, Patricia. Horizontes e desafios maternos das mulheres libertas. (Rio de Janeiro, 1880-1900). Revista Transversos. Dossiê: v. 1 n. 29 (2023): Gêneros, poderes e sexualidades nas tramas da história.

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