A abolição da escravidão no Brasil não significou o fim das vulnerabilidades para as mães libertas e seus filhos. Atravessando o racismo, machismo e classicismo, essas mães enfrentaram novos desafios para garantir a liberdade e o vínculo com suas proles.
A sombra da “reescravização”
Nos dias que se seguiram à Lei Áurea, a vulnerabilidade foi uma constante na vida dessas mulheres. O abolicionista José do Patrocínio já alertava, em 23 de maio de 1888, sobre uma “reescravização” que se espalhava pelo país. Assim, ex-senhores, na sanha por manter a mão de obra barata e reconfigurar o mundo do trabalho em condições similares à escravidão, lançavam mão de processos tutelares e contratos de trabalho. Esses mecanismos judiciais serviam para manter crianças e jovens sob o poder dos antigos proprietários. Dessa forma, transformavam o que deveria ser um direito fundamental – a liberdade de mobilidade – num dilema dilacerante para as mães: afinal, como partir e deixar seus filhos para trás?
Maternidade sob julgamento: órfãos de mães vivas
A condição de mãe daquelas mulheres era de extrema precariedade, num paradoxo cruel com o enaltecimento da maternidade na sociedade da época. Para as mulheres escravizadas, tão logo seus filhos nasciam, eram impelidas ao trabalho, sem direito sequer ao resguardo. Viam-se ameaçadas pela possibilidade de serem alugadas como amas de leite para nutrir os filhos de outras mulheres.

Portanto, a especificidade dos processos tutelares no pós-abolição residia no fato de que, na maioria dos casos, os menores eram considerados como órfãos mesmo com suas mães vivas. Suas mães e pais eram julgados incapazes de tutelar os filhos por serem pobres, moradores de habitações coletivas e por não terem uma ocupação funcional fixa. Sendo assim, essa leitura judicial se associava à natureza da filiação desses menores: ilegítima, considerando a união não regulamentada de seus pais. José do Patrocínio, em 1888, indignava-se com magistrados que se prestavam a considerar órfãos os filhos de mães que foram escravas, denunciando a criação de um “novo cativeiro”.
Mães libertas e a luta por vínculos e segurança: o drama de Maria Rita
Contudo, mesmo diante desses desafios, algumas mulheres mães mobilizaram esforços para defender o direito ao vínculo e a segurança de seus filhos, desafiando a estrutura racista e patriarcal que marcava aquela sociedade. Da publicação de anúncios em jornais de grande circulação buscando por seus filhos aos processos de remoção de tutela, as mulheres mães libertas se movimentaram para defender seus projetos de vida. E, nesse movimento, a manutenção dos laços familiares em segurança foi um quesito fundamental.
Em 1893, José do Patrocínio relatou a história de Maria Rita. Em Nova Friburgo, na região serrana fluminense, Maria Rita estava trabalhando para o alferes da Guarda Nacional e vereador Eugênio Francisco Pinto por quatro mil réis mensais. Porém, essa quantia era inferior ao que habitualmente se praticava na Capital, onde mulheres recebiam entre doze e vinte mil réis. Quando Maria Rita quis se retirar da residência do patrão, ele a pagou somente seis mil réis pelos seis meses de trabalho. Para piorar, Eugênio se recusou a entregar o filho de Maria Rita, Herculano, de 8 anos, alegando que o menino estava judicialmente sob sua tutela.
Continuidades da escravidão
A violência não se limitava à privação da liberdade e ao roubo do trabalho. Herculano sofria tantos castigos físicos que mal conseguia se levantar do chão onde estava deitado, local que mais parecia uma cova, segundo sua mãe. Num ato de desespero, Maria Rita tentou resgatar o filho com seus próprios meios. Possivelmente, conhecia a situação de Herculano e agiu pelo desespero. No entanto, Eugênio os surpreendeu e expulsou Maria Rita sob ameaças e sem entregar o menino.
Diante da violência, Maria Rita dirigiu-se ao juízo de órfãos da cidade. Lá, recebeu a informação de que precisava de 200 mil réis para abrir um processo de remoção de tutela e tentar resgatar o próprio filho. Como ela não possuia a quantia, o jornal propôs que “pessoas boas” da cidade a ajudassem financeiramente. Em 1893, José do Patrocínio, ao se referir à luta de Maria Rita, lamentou a gravidade do problema:
“Calcule-se, pois, se é possível a pobre raça negra pleitear a causa de seus filhos, quando não tem recursos para fazer valer o seu direito perante os tribunais”.
Cinco anos após a abolição, mães egressas do cativeiro, pobres, não tinham recursos para garantir o vínculo com seus filhos.
O silêncio do Estado
A desassistência do Estado e a sanha dos ex-senhores colocavam mães e filhos egressos do cativeiro em uma constante situação de insegurança, num contexto marcado por tensões, rupturas e continuidades. No entanto, não sem resistência, essas mães engendraram estratégias para proteger a própria liberdade e a de seus filhos. As mães egressas do cativeiro não tinham credibilidade e, por isso, sequer eram citadas em muitos dos processos tutelares. Por sua vez, os ex-senhores se limitavam a informar o nome e a idade do menor, algumas informações sobre si mesmos, como endereço e profissão. Portanto, essa disparidade evidencia as tensões raciais e de classe sexual expostas no judiciário e os privilégios da classe senhorial.
Estratégias e redes de solidariedade das mães libertas
O engajamento de José do Patrocínio, denunciando os processos tutelares e propondo a mobilização em favor das libertas, corrobora a permanência da mobilização de segmentos abolicionistas em defesa da liberdade. A despeito de todos os desafios, as mulheres mães libertas reuniram esforços para defender o direito ao vínculo com seus filhos e a segurança deles. Elas desafiaram a estrutura racista e patriarcal que marcava aquela sociedade e se movimentaram para defender seus projetos de vida. Assim, nesse movimento, a manutenção dos laços familiares em segurança foi um quesito fundamental. A dinâmica de disputa nos juízos de órfãos em torno dos ex-ingênuos, envolvendo suas mães e os ex-senhores, revela uma sociedade que buscou se consolidar pela hierarquização do sistema escravista. Enfim, o passado em escravidão foi um elemento decisivo na jurisprudência que se formou nos juízos de órfãos. Isso porque considerou os ex-senhores aptos para tutelar filhos que não eram deles, ao mesmo tempo que desqualificava a maternidade da mulher livre. E, assim, ameaçava os vínculos familiares entre mães e filhos egressos do cativeiro.